Receita de Mulher


Os olhos sejam de preferência grandes

E de rotação pelo menos tão lenta quanto

A da terra. (Vinícius de Moraes)

O seu semblante, redondo

Sobrancelhas arqueadas

Negros e finos cabelos

Carnes de neve formadas. (Thomaz Antônio Gonzaga)

Simpáticas feições, cintura breve,

Graciosa postura, porte airoso,

Uma fita, uma flor entre os cabelos. (Gonçalves Dias)

Verde carne, tranças verdes. (Garcia Lorca)

Lábios rubros de encanto

Somente para o beijo. (Junqueira Freire)

A sua língua, pétala de chama. (Cândido Guerreiro)

Nos lobos das orelhas

Pingentes de prata. (Gonçalves Crespo)

Mão branca, mão macia, suave e cetinosa

Com unhas cor de aurora e luz do meio dia

Nas hastes cor-de-rosa. (Luiz Delfino)

Os braços frouxos, palpitante o seio. (Casimiro de Abreu)

O dorso aveludado, elétrico, felino

Porejando um vapor aromático e fino. (Castro Alves)

Seu corpo tenha a embriagues dos vícios. (Cruz e Souza)

Com mil fragrâncias sutis

Fervendo em suas veias

Derramando no ar uma preguiça morna. (Teófilo Dias)

Nádegas é importantíssimo

Gravíssimo porém é o problema das saboneteiras

Uma mulher sem saboneteiras

É como um rio sem pontes. (Vinícius de Moraes)

As curvas juvenis

Frescas de ondulações de forma florescente

Imprimindo nas roupas um contorno eloqüente. (Álvares de Azevedo)

Qualquer coisa que venha de ânsias ainda incertas

Como uma ave que acorda e, inda mal acordada,

Move, numa tonteira, as asas entreabertas. (Amadeu Amaral)

De longe, como Mondrians

Em reproduções de revistas

Ela só mostre a indiferente

Perfeição da geometria. (João Cabral de M. Neto)

Que no verão seja assaltada por uma

Remota vontade de miar. (Rubem Braga)

A graça da raça espanhola

A chispa do Touro Miura

Tudo que um homem namora

Tudo que um homem procura. (Paulo Gomide)

E todo o conjunto deve exprimir a inquietação e espera. Espera, eu disse? Então vou indo, que senão, me atraso!

(Show da Rhodia: Mulher, esse super homem/1967).

Extraído do livro “Trinta anos de mim mesmo”, Editora Nórdica – Rio de Janeiro,1972, pág. 146.

Tudo sobre Millôr Fernandes e sua obra em “Biografias“.

Poesia Matemática


Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
“Quem és tu?”, indagou ele
em ânsia radical.
“Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.”
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
freqüentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.

Millôr Fernandes

Texto extraído do livro “Tempo e Contratempo”, Edições O Cruzeiro – Rio de Janeiro, 1954, pág. sem número, publicado com o pseudônimo de Vão Gogo.

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